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Cantos da Memória Diaspórica: representações, (des)identificações e performances de Mishima a Okinawa, de Victor Kinjo (Tese de Doutorado em Ciências Sociais/Unicamp)


Download da Tese Completa Prelúdio Parir um texto é uma grande responsabilidade. As palavras têm poder. A pesquisa nos faz novas pessoas. Nela entramos de corpo e alma. Ela influencia sobremaneira nossas vidas, nossas formas de experienciar, nossas visões do mundo. Saímos transformados. 

Realizar uma pesquisa é uma experiência de vida. Um rio de curso incerto que desemboca num mar de possibilidades. 

O doutorado é um ritual. Uma passagem nele é feita. A aceitação dentro de uma comunidade de doutores. O candidato é colocado num espaço liminar, ambiguamente à margem da vida cotidiana, mas ligado visceralmente às coisas do mundo. Momento privilegiado, crísico e fundamental, em que podemos ler, pensar, estudar, observar, viver, escrever e intervir sobre um determinado tema, alguns objetos, algum objetivo sendo buscado.



Pesquisar é se aprofundar num determinado universo, se dedicar a ele, ler outras pessoas que o fizeram ou o fazem. Pensar questões junto com elas, colocar lado a lado textos nunca antes colocados, experimentar. A intuição ligada. Nas Ciências Sociais, nós buscamos pensar o presente, suas histórias, seus futuros possíveis e impossíveis. Presente problemático, urgente e potente. As perguntas são infindáveis. A comunidade de pensadores dá regras e suporte. Transmite como as questões têm sido abordadas dentro de um determinado campo. São nos apresentadas tradições teóricas, conceitos, métodos, muitos livros e alimento para a imaginação socio-político-antropológica.

Num mundo como o nosso, em que a quantidade de recursos disponíveis é enorme, é difícil navegar com alguma certeza. A cada porta aberta, um universo bibliográfico e imagético se apresenta, múltiplas possibidades, em várias línguas e visões do mundo. É preciso humildade e respeito numa pesquisa. É preciso também arriscar-se. Para mim foi um momento de crise: perigo e oportunidade. É preciso foco. Algum ponto de partida? O ponto de partida deste doutoramento foi a questão da sexualidade na literatura de Yukio Mishima, um famoso escritor do Japão do pós-guerra que cometeu harakiri em 1970.


A primeira vez que ouvi seu nome foi em Milho Verde-MG. Almoçava no restaurante da

falecida Jacira, um homem de meia-idade vem e pergunta:

- Você é japonês?

- Sim! Quer dizer, não! Nasci no Brasil, mas meus avós são japoneses.

- Conhece Mishima?

- Não.

- É um escritor lá da sua terra. Um louco anarquista. Se matou como um samurai.

Muito bom. Genial.


A primeira vez que li Mishima foi presente de um ex-namorado. O ano deve ser 2007. Ele queria ler “literatura gay”, procurou no google, encontrou Mishima. Pagou trinta e nove reais em Confissões de uma Máscara na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Leu-o e presenteou-me.

Li numa noite só, como foi com Água Viva de Clarice. Mas nunca imaginei, nunca imaginei que um dia leria e releria. Que seria, um dia, íntimo de Mishima. Que, anos depois, visitaria seus manuscritos no Museu LiterárioYukio Mishima, aos pés do Monte Fuji. Mishima chegou a mim por essas duas imagens: um escritor “gay” e “japonês”, suicidando-se como um samurai. Um autor da “minha terra”. Parecia pouco realizar uma pesquisa sobre uma pessoa só. Mas, olhando de perto, cada livro é mesmo um mundo, cada pessoa é um universo. Mishima escreveu muitos, e seu

universo (como todos) é definitivamente complexo e atravessado pela experiência social. De toda forma, por mais que um dia dedicasse minha vida a estudar a vida de alguém, imagino o pouco que poderia fazer. Não por nada. É só que a vida não cabe mesmo em lugar nenhum.

Para que os livros se realizem como literatura, eles também precisam ser lidos. E, para serem lidos, eles precisam chegar até o leitor. A obra literária circula (ou não) por conta de uma determinada rede que lhe dá voz (ou não). E, assim, a obra chega ao leitor. E este leitor é outra pessoa que também experiencia o mundo de uma certa forma. Ele lê, então, a obra a partir de algum lugar específico, influenciado pela sua própria existência, que é pessoal, mas também social, cultural e histórica. Um dos pressupostos desta tese é que as pessoas não são entidades isoladas, mas sujeitos que surgem na fricção com a história em grupos microssociais e contextos macrossociais, formados simbólico-políticocorporal-historicamente por discursos, representações, acontecimentos, experiências, sentimentos e ações.

Assim, no decorrer desta pesquisa, dei-me conta de que ela era sobre Mishima, mas também sobre um neto brasileiro da diáspora okinawana, gay/bi/queer, lendo Mishima desde o Brasil no século XXI. E esse lugar fez indagar outras questões.

Percebo hoje que, por trás de meu interesse em Mishima, estava a vontade de estudar o Japão, pensar a japonesidade no Brasil, a experiência da diferença do “oriental” no país da utopia antropofágica. Por trás da proposta de estudar a literatura, estava o impulso de pensar a arte, seus condicionantes, suas possibilidades, seu artesanato. Por trás da coincidência de estudar o pós-guerra, estava a necessidade de falar de Okinawa, sua história com tão pouca tinta, a atualidade de seus problemas. Por trás da necessidade de falar de (homo)sexualidade – o tema inicial da pesquisa – havia a dificuldade de pensar os desejos, os fantasmas, os corpos, os amores.

Esta tese gerou e foi gerada numa crise das identidades e foi finalizada em meio a uma crise econômica, ecológica e sociopolitica que se intensificou no Brasil e no Mundo em 2014/2015. Surgiu da necessidade de pensar as diferenças e semelhanças, da busca de um espaço em que se pudesse falar, entrar em contato, transformar. Uma tática de (auto)conhecimento, (des)identificação, reflexão, experimentação, escrita e performance. Durante esses mais de quatro anos de pesquisa e vida, as perguntas se transformaram, certezas foram questionadas, e caminhos inesperados surgiram. A visita ao Japão, a descoberta do corpo, a experiência da performance, a lembrança da música, a dificuldade de pensar a morte, a urgência da questão okinawana, a vida cotidiana, a ancestralidade, entre outras vivências extra-curriculares, multiplicaram os caminhos e descaminhos do processo que parte, no entanto, das Ciências Sociais. 

As Ciências Sociais são complexas. Nossos objetos de pesquisa são complexos: @s human@s, suas relações, suas riquezas, suas pobrezas, suas injustiças, seus conflitos, suas relações e estruturas de poder, etc. As Ciências Sociais são reflexivas. Elas possibilitam refletir sobre nosso próprio mundo. Elas falam sobre sua insuficiência, sua potência de transformação. Mas elas são feitas por humanos e, sendo assim, se encontram em meio a muitas contradições. Os conhecimentos são também marcados por relações de poder e o pensamento mantém complexos vínculos com as ações, produzidas e produtoras do presente. O mundo que pensamos é o mesmo mundo em que existimos, atuamos. 

Karl Marx (2002:102) finaliza as teses sobre Feuerbach com uma frase célebre: “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformálo”.

Quer dizer, importa não somente o pensamento sobre o mundo, mas, sobretudo, a ação sobre ele. Qual pensamento? Qual ação?

Um dos objetivos deste trabalho foi pesquisar formas e espaços de enunciação para lançar luz à situação contemporânea de Okinawa, num contexto globalizado, mas marcado por relações de poder. Tendo um histórico de subjugação política frente à China, ao Japão e aos EUA, Okinawa tem hoje 20% de seu território ocupado por bases militares norteamericanas.

Em 2014, começou a construção de uma nova base (Henoko) no norte da ilha, sob protesto de movimentos sociais, população e governos locais. Esses fatos, no entanto, dificilmente chegam no Brasil, onde Japão e EUA são celebrados como nações desenvolvidas e democráticas. Assim, a fim de visibilizar um nódulo do neo-colonialismo contemporâneo, que difunde a guerra em nome da paz, esta tese parte de uma análise das representações sobre o Japão para fomentar discussões no Brasil sobre o “problema okinawano” e a persistência do colonialismo.


Este texto foi escrito como forma de contribuir para as reflexões e ações teórico-político- artísticas sobre descolonização, representações, identidades e diáspora no mundo contemporâneo. Mas também como exercício de imaginação do passado, presente e futuro do que chamamos de Okinawa, de Japão, de Brasil e de mundo. Ele se inspira nos estudos culturais (pós-coloniais) e nos estudos queer (transviados), procurando com eles dialogar para construir uma leitura crítica do Japão do pós-guerra, a experiência subalternizada de okinawanos e “outros” sujeitos. Ele também é uma forma de trazer à luz a história dos meus antepassados, que não está nos livros de história.


Houve, no entanto, um limite em que, como em Mishima, a palavra escrita não foi mais suficiente e o corpo, e suas memórias, teve que ser colocado em ação. Uma pesquisa artística em torno de cantos, performances, pinturas e escritas de si acompanhou os desenvolvimentos desta tese. Porque, como disse Heiner Müller, em frase que virou epígrafe do livro De la Parole aux Chants (Da palavra aos cantos), organizado por George Banu: “Ce dont on ne peut plus parler, il faut le chanter” = “Quando não se pode mais falar, é preciso cantar”.


Leia a tese completa, clicando aqui


Defendida em 15/05/2015 pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, na sala do LUME Teatro, em Barão Geraldo/Unicamp. Banca Avaliadora:


Richard Miskolci (Orientador)

Alice Lumi Satomi (UFPB)

Darci Kusano (USP)

Iara Belleli (Unicamp)

Karla Bessa (Unicamp)


 
 
 
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